Em dezembro de 1974, na minha cidade chovia copiosamente todas as noites, assim como chovia depois do almoço na distante Belém do Pará. Até parece mentira de político, mas há meio século no Brasil chovia regularmente, ou minuciosamente, como num conto de Jorge Luis Borges, o filho da dona Leonor.
Com o comércio aberto até às 22h, não tinha como ficar em casa. Pelo menos para quem já ia pelos 16 anos de idade, numa casa de seis cômodos, com cinco irmãos, e sem TV. A mesma casa da Rua Elizabete, de onde talvez meus irmãos também nunca quisessem ter saído, e que hoje ainda guarda meu pai.
Sem guarda-chuva para voltar, eu me abrigava na Livraria Mariza, com sua modesta seção de discos, onde o cliente podia ouvir os últimos lançamentos daquele ano em que Jesus nasceria mais uma vez logo mais.
Foi nessa livraria e papelaria do Aladim que eu comprei o LP Sinal Fechado, recentemente lançado pelo Chico Buarque, para presentear meu amigo Marco Aurélio naquele primeiro Natal da sua longa tetraplegia. Na capa do disco, Chico faz caras e bocas em fotos de perfil que, na falta de sonhos melhores, algumas pessoas dizem ouvir cantando, todas ao mesmo tempo, as doze faixas do disco. Eram assim os discos naquele tempo: seis músicas de cada lado, como o dia e a noite de igual duração.
Em dezembro de 1974 eu deixei a casa de meus pais (e de meus irmãos) para ir cuidar da vida na capital. Eu não sabia, mas era uma viagem comprida e sem volta. Nos ônibus se fumava à vontade. Ainda não existiam as assaltantes praças de pedágio, nem as escorchantes paradas nos tristes postos à beira da estrada.
Depois de dez longas horas se chegava ao destino, fedendo como cinzeiro e tremendo como um pinto na chuva, cuja mãe agora estava a 585 quilômetros de distância. Em São Paulo ainda imperavam a garoa e os seus demônios. Na velha rodoviária, em frente à imponente Estação Júlio Prestes, ninguém me esperava – apenas o medo.
*A opinião dos nossos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do página d.
Mín. 20° Máx. 33°