Foi recebida com alegria a decisão do pároco de realizar duas missas do galo, uma às 18h e outra às 19h30. Foi-se o tempo em que esta celebração era obrigatoriamente à meia-noite. Já se passaram cinquenta anos e conta-se que seu criador foi o Papa Sisto III, em algum momento do século V. Sem pestanejar optamos pelo primeiro horário. Seria hipocrisia não reconhecer que, assim, teríamos mais tempo para a segunda festa, mas sem esquecer que a principal era a função religiosa.
Como sempre ocorria, as famílias foram à celebração, onde o padre nonagenário esqueceu a idade e soltou o seu vozeirão em uma homilia que tocou o coração: “...É importante ter a consciência de que Deus vem para mim e para recebê-lo é necessária a humildade que rompe com a vaidade e a soberba...”
Foi estipulado o prazo máximo de uma hora depois do término da missa para que todos se dirigissem à casa do Beto e da Rosinha, tempo suficiente para se dar os últimos retoques nos pratos. Bem antes das 21 horas já estavam todos lá.
Era imensa a saudade dos sorrisos que foram escondidos pelas máscaras impostas pela pandemia, a qual impediu a reunião no último Natal. As colunas da grande varanda, voltada para a piscina, estavam decoradas com luzinhas multicoloridas. Ouvia-se ao fundo músicas natalinas executadas por Luiz Bordon em sua harpa, CD escolhido a dedo por Rosinha. A extensa mesa, montada no sistema antigo, três tábuas paralelas de 30 cm de largura sobre cavaletes, recobertas com toalhas coloridas que cada família trouxe. Beleza à parte era o buffet, coberto com uma linda toalha vermelha com estrelas bordadas em dourado, sobre a qual foram colocados os apetitosos pratos, e na parede, uma enorme guirlanda tendo ao centro a sagrada família.
Rosinha bateu palma três vezes, ao que todos responderam da mesma forma. Silêncio se fez, inclusive pelos menores. Diante do olhar carinhoso de Rosinha, Beto iniciou: “Hoje é uma noite especial.” Mal terminara de falar quando uma criança questionou: “Por que é uma noite especial?”. Com um grande sorriso Beto continuou: “Hoje festejamos o nascimento do Menino-Deus. É Deus que se abaixa e vem morar com os homens.” A criança não deu sossego: O Menino Jesus é metade Deus e metade homem? Todos olharam para o Beto para ouvir como ele se sairia desta enrascada.
Beto respirou fundo, olhou para cima e para a esquerda, como se estivesse buscando as palavras na memória: “Não há divisão: metade homem e metade Deus. Jesus é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. Nem há confusão, isto é mistura, das duas naturezas. A humanidade em nada é diminuída ou absorvida pela divindade. Mas a comunhão das duas naturezas se faz na unidade de uma só Pessoa, de um só e mesmo sujeito: Jesus, o Cristo Mediador.” Olhando afetuosamente para a criança concluiu: “O importante é você guardar em seu coraçãozinho que o Menino Jesus é Deus e é homem. ” Esta foi a deixa para que Rosinha puxasse “Noite Feliz”, e todos a seguiram. Mas interrompeu logo após a segunda estrofe e olhando ao redor pediu para que todos relembrassem os parentes e amigos que foram levados pela Covid-19. O silêncio invadiu o local e o coração de todos. Só foi quebrado quando Rosinha retomou “Noite Feliz” em um tom mais baixo, quase murmurando. Muitos somente balbuciavam a letra em razão das lágrimas, as quais foram estancadas ao final, ante o retumbante “Viva o Menino Jesus”, explodido pelo Beto.
Esta era a senha para que eu retornasse à varanda tendo nos braços uma bela champanheira de acrílico contendo água, gelo e duas garrafas do Champagne “Moët & Chandon Brut Impérial’. Devidamente ensaiado, Beto seguiu meus gestos e abrimos simultaneamente as duas garrafas e, rapidamente, servimos os adultos que, cada qual, já estava com sua taça. Com taças cheias e levantadas, formou-se um círculo, com as crianças ao meio com os respectivos copos de refrigerante, e Beto completou: O primeiro brinde vai para o aniversariante, o Menino Jesus, e que ele nos conceda um 2022 mais suave e com saúde.
*Texto publicado originalmente pelo autor no jornal Debate em 2021
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