O ano mal começou e já temos um forte candidato a “fato do ano” com a histórica conquista do Globo de Ouro pela atriz Fernanda Torres, na categoria “melhor atriz em filme de drama”. O prêmio é tão impactante que inviabiliza que sejamos atacados por nós mesmos em nosso complexo de vira-lata, como bem diria Nelson Rodrigues. Sem papinho de “prêmio bosta” (é o Globo de Ouro!) ou “ganhou de ninguém” (superou “apenas” Kate Winslet, Tilda Swinton, Nicole Kidman, Angelina Jolie e Pamela Anderson, é como vencer uma Copa do Brasil desbancando Palmeiras, Corinthians e Flamengo).
Como não poderia ser diferente, a premiação movimentou as redes e a imprensa brasileira, mas esse trofeu (que pode ganhar uma companhia em breve, com a chegada do Oscar 2025; por que não?) significa muito mais do que parece e certamente estaria sendo festejado loucamente pela história se essa sábia senhora tivesse pernas, braços e uma voz para gritar.
Isso porque o filme “Ainda estou aqui”, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, conta a história de sua família, atacada de maneira vil por agentes da ditadura militar, especialmente quando sequestraram, torturaram e fizeram desaparecer seu pai, o deputado Rubens Paiva, em 1971. Eunice Paiva, esposa de Rubens, ficou sozinha na luta pela verdade, pelo marido, por si mesma e pela família, já que tinham 5 filhos. Foi Eunice a personagem brilhantemente interpretada por Fernanda Torres.
O Globo de Ouro, mais do que um trofeu, deu ao filme visibilidade e mostrou ao mundo a realidade vivenciada durante o período de ditadura militar no Brasil, infelizmente tratado de maneira enfadonha por grande parte dos brasileiros, como se fosse brincadeira de criança — a ponto de fazerem manifestações públicas de apoio aos militares e à própria ditadura, sonhando reviver o pesadelo em sua esquizofrenia verde-amarela, tudo por uma desprezível pauta moral que é totalmente fantasmagórica (onde está a moral em aceitar que pais de família sejam torturados?).
O prêmio também é uma vitória gigantesca ao cinema brasileiro, mas não apenas pela arte em si. Hoje todos comemoram Fernanda Torres como uma nova Ayrton Senna a unir o país, mas não podemos esquecer das diversas tentativas de boicote sofridas pela obra, na tentativa de restringir seu acesso e diminuir a história que ela conta. Fato semelhante ocorreu em 2021, quando a própria Ancine (Agência Nacional de Cinema) foi desmontada e, com subterfúgios, boicotou o lançamento do filme Marighella.
Onde estava o clamor pela “absoluta liberdade de expressão” nas tentativas de boicote à arte? Pode-se não concordar com ideais ou ideologias, porém suprimir a história, ao bel-prazer, é um papo totalmente diferente. É justamente aí que reside uma das maiores belezas da arte: a possibilidade de contar e recontar histórias, de criar e recriar mundos — verdadeiros ou fantásticos —, de fazer sentir aquilo que meras palavras não alcançam. Essa é a arte de “Ainda estou aqui”, que expõe parte das atrocidades praticadas pela ditadura militar e as joga pra cima para que todos dêem uma boa olhada, tanto o público internacional quanto os negacionistas que vivem dentro de nossas fronteiras.
E se você está pensando que esse texto é “de esquerda” ou algo assim, sinto informar que você não entendeu nada, então comece de novo a leitura antes de ler os parágrafos seguintes. Não é ser de direita ou de esquerda, e sim ser a favor ou contra a barbárie, sequestros, mortes e tortura. É impossível ser a favor da ditadura militar sem aceitar que, com ela, vem todo esse pacote. Não precisa ser “de direita” para prezar pelo bem de sua família e lamentar que tantas sofram, assim como não precisa ser “de esquerda” para criticar a ditadura militar. Reconhecer isso é o primeiro passo para conquistar a sanidade mental.
Aliás, a própria Fernanda Torres, em entrevista concedida após a cerimônia, fez questão de falar sobre o tema. Disse ela (e quem sou eu para discordar?) que o filme é uma emoção para todos, de direita ou de esquerda. Diferente do que aconteceu com o filme Marighella, não é uma questão de levantar pautas sobre guerrilhas, esquerda, comunismo, crimes etc. para não assistir ao filme; “Ainda estou aqui” é sobre a família e qualquer um pode se relacionar, sentir na pele o que passou a família Paiva. Não precisa ser de esquerda ou de direita para amar a própria família e ser contra a tortura do próprio pai, do próprio marido. O nome disso é empatia e todos temos ao menos um pouco, mesmo que esteja escondida.
Nesse sentido, o filme cria esse sentimento para todos, jovens, maridos, esposas, e qualquer pessoa que tem família pode reconhecer o sofrimento criado pela ditadura militar em sua conduta de torturas, sequestros e mortes. Num dia você acorda e deseja bom dia ao seu pai, dá um beijo em seu marido; no dia seguinte, ele simplesmente desaparece para nunca mais voltar e é declarado morto décadas depois. Esse é o sentimento que une o país contra a barbárie e que faz do filme uma importante aula sobre liberdade de expressão e luta por direitos civis.
Ah! Por unir a verdade, a história, o cinema e o Brasil, é impossível não sentir um soco no estômago ao assistir ao filme; impossível, também, não desejar que nenhuma família passe pelo que passou a família Paiva e incontáveis outras, seja em que tempo for. O filme e a atuação de Fernanda Torres deram esse presente de união, exposição e verdade ao público, e quanto à história… Fico com as palavras de Eduardo Galeano: “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.”
A luta de Eunice Paiva era pela verdade e para que todos soubessem o que aconteceu com seu marido e com tantos outros perseguidos pela ditadura. Ela conseguiu o que queria e agora, com o sucesso do filme, podemos definidamente dizer que Eunice venceu. De novo.
*A opinião dos nossos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do página d.
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