Nesse começo de mês, tomaram as manchetes do país as manifestações realizadas por entregadores contra empresas como o “iFood”, com paralisação de diversos profissionais até que sejam atendidos seus pedidos. O maior ato, realizado na cidade de São Paulo em 31/03/2025, ganhou o nome de “Breque dos apps” e teve como principais pedidos a fixação de taxa mínima por corrida, o aumento da remuneração por quilômetro rodado, a limitação da atuação de entregadores com bicicletas e o pagamento integral de pedidos individuais em caso de agrupamento das entregas.
O que não pode passar despercebido, no entanto, é a contradição existente em muitas críticas realizadas no passado e que, hoje, geram frutos amargos a todos esses profissionais (e a incontáveis outros, de diversas profissões e de todas as localidades). Refiro-me à famosa frase que, volta e meia, circula pela internet, quase sempre gritada a plenos pulmões (ou escritas em caps lock) por pessoas que desconhecem totalmente a história das conquistas trabalhistas e as mazelas que enfrenta um operário desprovido de privilégios: “Deus me livre de CLT!”
Já faz uns anos que essas ideias tortas ganharam força, muitas vezes promovidas em redes sociais por leigos, investidores ou empreendedores que buscam apenas os próprios interesses. Só esquecem de estudar, ao menos um pouco e antes de falar besteiras, as origens, a evolução e os conceitos da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, aprovada em 1º de maio de 1943.
Isso mesmo, nossa CLT já tem mais de 80 anos e se junta aos nossos velhinhos como vítima de um injustificado etarismo, já que, mesmo com idade avançada, permanece moderna em incontáveis pontos, ainda haja, por óbvio, outros que merecem maior atenção para acompanhar as mudanças sociais impostas pela dinamicidade das relações humanas e pela rápida evolução tecnológica, que traz consigo novas relações de trabalho inexistentes na década de 1940.
A CLT foi tão impactante em diversos conceitos que diversos países de primeiro mundo instituíram apenas neste século direitos como férias remuneradas e décimo terceiro salário. E aí surge o questionamento: o que justificaria um país de terceiro mundo possuir uma legislação trabalhista tão moderna e avançada?
Nosso país, uma democracia jovem e com um mercado de trabalho formado após séculos de exploração desumana de negros, indígenas, imigrantes e comunidades periféricas, tem uma bela tradição de luta por direitos trabalhistas, em lutas coletivas que precisaram derrubar imensos obstáculos para enxergar a luz do dia. A própria abolição da escravidão, como se sabe, foi apoiada pela Inglaterra porque os britânicos já não lucravam como antes e precisavam que as colônias adquirissem suas manufaturas, o que era impossível com a manutenção do regime escravagista. Ficou conveniente ceder diante da luta de tantos pela libertação, mas se sabe ter sido em benefício próprio e não por mera benevolência.
Com o tempo, a única regra que se manteve foi a da exploração, mudando apenas quem era o algoz. E nesse contexto, quem abriria mão de privilégios para conceder aos trabalhadores, em sua maioria “chão de fábrica”, direitos trabalhistas e boas condições de trabalho? Resposta fácil: ninguém.
Tudo que se conquistou, do primeiro ao último direito, foi com muita luta. Foram greves, manifestações, negociações intermináveis, pressão e diversas vidas investidas única e exclusivamente para garantir direitos que hoje, infelizmente, são desprezados na irresponsabilidade de quem não faz a menor ideia do estrago que leva adiante nos impropérios que inundam suas conversas, decisões e redes sociais.
Será mesmo que haveria tamanha insistência pela concessão de maior liberdade na contratação de trabalhadores na informalidade se isso fosse realmente benéfico a quem recebe e não a quem paga? Como advogado trabalhista e interessado no tema, entendo a necessidade de modernização da legislação para dar abrigo a relações novas, especialmente depois da pandemia, quando vieram para ficar inúmeras mudanças no labor, como é o caso do trabalho em home office. Mas essa demonização da CLT é uma propaganda falsa e irresponsável. Pode parecer péssimo ser empregado formal quando você tem dinheiro investido na XP e tempo livre para estudar CDI, renda fixa, tesouro direto e afins; mas para o trabalhador sem qualificação e que precisa vender o almoço para comprar o jantar, essa ilusão pode ser fatal.
O tema ganhou força quando sobreveio o debate sobre a “uberização”, e obviamente a empresa multinacional americana exerceu toda a sua força nos bastidores para evitar a maciça busca de trabalhadores pelo reconhecimento de vínculo empregatício, ainda estivessem presentes todos os requisitos legais para tanto (art. 3º da CLT). “Para o trabalhador é vantajoso, ele ganha mais, e para a empresa também, porque fugimos dos encargos trabalhistas”, dizem. Mas quando poderá o trabalhador aproveitar o tempo de vida com sua família se não tem férias e 13º? Se cair da moto ou bater o carro, como conseguirá trabalhar novamente, se não tem estabilidade no emprego? Que tempo terá para se recuperar, se não tem garantia salarial? Como poderá garantir sua segurança alimentar ou tratamento de doença grave, se não tem fundo de garantia? De onde virá sua segurança financeira se pode ser dispensado a qualquer momento sem o recebimento de verbas rescisórias e sem seguro-desemprego? Como o trabalhador não se sentirá intimidado para reivindicar direitos em sua pessoa física, sem a proteção sindical?
Talvez o erro maior seja considerar o dinheiro como único fator preponderante, como se a vida se resumisse à monetização do tempo. Será mesmo que alguém acredita que essas multinacionais repassam integralmente aos trabalhadores o que deixam de gastar com encargos trabalhistas (que não existem por acaso, não é mesmo?)? É fácil criticar as leis trabalhistas sentado numa cadeira gamer enquanto se brinca de day trade, sentindo-se isento de responsabilidade quando a fome bater na porta do trabalhador desprotegido.
O debate é necessário e a modernização das leis trabalhistas, também; porém esse é um assunto sério demais para ser tratado com desdém e irresponsabilidade por quem pensa apenas no próprio bolso ou quer likes nas redes sociais, e não no que é, verdadeiramente, melhor para aquele que acorda todo dia às 4h da manhã para lavar o rosto nas águas sagradas da pia. Nada como um dia após o outro dia.
*A opinião dos nossos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do página d.
Mín. 18° Máx. 25°