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Como fazendeiros e autoridades “driblaram” a Lei Áurea em Santa Cruz do Rio Pardo 

Senhores de escravos utilizaram brechas legais para, na prática, manter o trabalho compulsório até depois de 1888, ano da promulgação da lei da abolição da escravatura

18/05/2025 às 14h15 Atualizada em 18/05/2025 às 17h02
Por: Colunista Fonte: Celso Prado e Junko Sato Prado
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Como fazendeiros e autoridades “driblaram” a Lei Áurea em Santa Cruz do Rio Pardo 

 

Desde 28 de setembro de 1871, pela Lei Imperial nº 2.040 - a chamada 'Lei do Ventre Livre', a escravatura negra estava com os dias contados: "Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação anual de escravos". Somente questão de tempo, em verdade ainda uma longa agonia e sofrimento, mas o fim da escravidão estava decretada.

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A 'Lei do Ventre Livre' também fazia cessar práticas hediondas, que consistiam em obrigar mulheres negras manterem relações sexuais com negros especialmente escolhidos como reprodutores.

A lei, no entanto, não tratava apenas do ventre livre e os cuidados do governo com os "nascidos livres de pais escravos - artigos 1º e 2º." Certa atenção e verifica-se que o artigo 3º podia trazer a libertação antecipada do escravo mediante quota anualmente disponível do fundo destinado para a emancipação da mão de obra escrava. De acordo com o Governo de São Paulo, Santa Cruz aderiu ao Fundo, em 1878, com plano de libertação de 236 [duzentos e trinta e seis] escravos matriculados que seriam libertos, gradativamente, mediante reembolso aos senhores escravagistas, através do município, em cotas anuais (Registro de Governo – Província de São Paulo, U 1113, 1882/1883: 24 e 26).

Apesar do recebimento já da quarta cota do Fundo de Emancipação da Mão de Obra Escrava em 1882, Santa Cruz não registrara, ainda, libertação de nenhum escravo, consoante mencionado documento oficial, com justificativa quanto a aplicação apenas da primeira cota e que as demais seriam lançadas conjuntamente em razão dos baixos valores do referido fundo. Não obstante elevou-se para 253 o número de escravos matriculados em Santa Cruz do Rio Pardo (RG BN 1027, 1882/1883: Mapa S/N entre as páginas 62 e 65).

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Santa Cruz, para 1886, considerando recebimento de recursos do Império e da Província para libertação de escravos, e declarado apenas um livramento, teve anunciado vistoria, por junta nomeada, para verificação e classificação de escravos efetivamente matriculados no município. O número de escravos inscritos no programa caiu, então, de 253 para 243, com alguns sexagenários (RG, BN 1027, 1882/1883: Mapa S/N entre as páginas 62 e 65).

A libertação legal de escravos sexagenários nem sempre ocorria, mais em razão de pedido do próprio beneficiado, afinal para onde iria ele com avançada idade e sem condições de sobrevivência independente?

De igual forma, as próprias entidades envolvidas na libertação de escravos, não estavam preparadas para albergar velhos libertos, nem tinham interesses naqueles considerados improdutivos. Os fazendeiros, através do município, mantinham a justificativa que o ressarcimento pela libertação de um escravo não era compensador para o proprietário individualizado.

O governo, em 1887, confirma Santa Cruz com 306 escravos matriculados, no valor de 121:075$000, valor médio de 702$615 cada 'peça' ou escravo a ser libertado (RG, BN 1032, 1887/1888: 19, 5º Distrito), valor médio de mercado.

O significativo aumento de 243 para 306 escravos negros, em 1887, é bastante suspeito, porém nesse mesmo exercício registros oficiais revelam libertação de 100 escravos, pelo Fundo de Emancipação, acrescidos de 1 sexagenário liberto e 3 óbitos (RG, U 1140, 1887/1888: 28). Os demais estariam livres a seguir, ainda antes da abolição.

Nenhum escravagista regional teve prejuízos com a 'Lei Áurea', nem a escravidão local encerrou-se com o ato abolicionista, diante de artifício, se não ilegal ao menos imoral, que fez lucrar todos os donos de plantéis.

O negro podia ingressar com processo de libertação, pelo fundo de emancipação, pela compra particular da liberdade ou através da Irmandade, com o dinheiro 'depositado em juízo', mas o processo podia ser contestado pelo patrão e isto demorava anos, e durante a tramitação processual, quase sempre o negro mantinha-se sujeito ao 'Jugo do Cativeiro'.

Concedida a libertação num dos termos, acima o dono do plantel capitalizava duas vezes, lançando o alforriado no rol dos libertos pelo Fundo de Emancipação; mas era sempre o dono quem decidia a liberdade. Raramente acontecia alforria por algum ato de bravura do escravo - exceto nos tempos da 'Guerra com o Paraguai', ou algo que sensibilizasse o patrão. Santa Cruz do Rio Pardo, em 1883, teve acontecimento emblemático. O delegado de polícia, Manoel Luiz de Souza, com seus subordinados provocaram a prisão de infelizes negros à noite reunidos na residência de certo Francisco José da Rosa, porque estavam sob o 'jugo do cativeiro', e lhes era proibido reunirem-se à noite, pois que outro motivo não havia para a ação policial (Correio Paulistano, 04/01/1884: 2, matéria de 17/12/1883).

O negro flagrado durante o 'jugo do cativeiro', por qualquer motivo, retornava ao regime da escravidão sem ressarcimento dos valores aplicados.

No Vale do Paranapanema, meses antes da 'Lei Áurea', os senhores de escravos negros sabiam prestes a abolição, e muitos concederam liberdade antecipada aos seus cativos, através de escritura em cartório, na qual o liberto comprometia-se prestar serviços gratuitos ao ex-dono, por tempo estipulado, a título de reparação, indenização ou alforria, sendo muitos documentos sem datas e assinaturas para uso posterior, caso necessário.

Segundo Leoni Ferreira da Silva (‘Minha Terra – Assis’, 1979), tais feitos tratava-se de estratagemas, cujas escrituras lavradas "com datas atrasadas, com poucos dias de antecedência ao decreto, diferenciando algumas de prazo maior, outras de menor prazo, mas se vê que tudo era a mesma coisa." (Leoni, 1979: 298-300).

O mesmo Leoni descreve sobre uma escritura pública, lavrada e registrada em Campos Novos Paulista aos 06 de abril de 1888, em que o fazendeiro santa-cruzense João Marques da Silva concede liberdade à escrava Victória, matriculada na coletoria de Santa Cruz do Rio Pardo, sob a condição dela prestar-lhe serviço gratuito pelo prazo de um ano. Para a escrava Victória, livre por documento oficial em 6 de abril de 1888, a escravatura terminou apenas em abril de 1889.

Certos contratos consideravam o escravo ter recebido antes determinado valor pela liberdade, ou seja, o período que o patrão lhe cuidou, seu preço de compra, os gastos com alimentações, vestuários, medicações e prejuízos causados, morte provocada ou não de algum animal, dias parados por quaisquer motivos, quebras de equipamentos ou maquinários, entre outras ocorrências, daí o serviço gratuito em retribuição. Quando do vencimento do prazo, se anterior a edição da lei de libertação, então renovava-se o período sob qualquer pretexto ou exigência patronal.

Diante dos expostos, não se pode pretender que o regime de escravidão negra em Santa Cruz tenha sido diferente das demais regiões, em especial, na província de São Paulo. Assim, assevera-se que os seus negros escravos também foram protagonistas de diversas rebeliões, fugas, crimes e mesmo formações de quilombos, de onde partiam resistências, fossem através de assassinatos de preadores e colaboracionistas, fossem através das promoções de fugas.

Onde atual município de Paraguaçu Paulista existiu o 'Quilombo Patrimônio das Antas', fundado por escravos. O 'Patrimônio das Antas' precedia chegada dos desbravadores, 1870/1878, com os quais mantiveram convivência mais ou menos pacífica, desde que por lá não se abrigassem negros fugidos das fazendas locais. Naquele Quilombo tinha negros das regiões do Rio Novo [Avaré] e do Pardo, entre outras localidades. Giannasi confirma existência do Patrimônio das Antas "fundado antes da Lei Áurea por ex-escravos alforriados e, após essa lei, tinha crescido consideravelmente, com adesão de muitas famílias de libertos" (Giannasi Chrysostomo, 2003: 170-171).

Em 2007 ainda residia uma família quilombola no Patrimônio das Antas, cuja antepassada, escrava fugida, segundo informações colhidas, tinha matrícula em Santa Cruz do Rio Pardo.

Não se tem registros de mulatos escravos em Santa Cruz, e a escravização indígena, proibida desde os anos 1754, ainda em 1912 persistia em Santa Cruz do Rio Pardo, sob o título prestação compulsória de serviços gratuitos.

Cafezal - Fazenda Mandaguahy, outrora em território de SCRPardo - Foto de Guilherme Gaensly, acervo de Eduardo Gerodetti

 

Carta de libertação da escrava Victória 

 

 

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O casal de memorialistas Celso Prado e Junko Sato Prado dedica-se à história antiga santacruzense e regional. Com uma densa produção literária, Celso e Junko são responsáveis pelo resgate de episódios e personagens marcantes, além de trazerem à tona informações inéditas a partir de meticulosas pesquisas documentais.
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