Santa Cruz do Rio Pardo, a “Joia da Sorocabana”. São Paulo, a “Cidade da Garoa”. Bauru, a “Cidade sem limites”. Fernão, “Pequena, mas atrevida”. A família Martins coleciona criações de apelidos e slogans de cidades do Estado de São Paulo desde os tempos mais remotos, uma tradição que passa de pai para filho através das gerações e que mantinha, até a publicação deste texto, o árduo traço do anonimato criativo — eles continuarão negando, então não adianta indagá-los a respeito, assim como não adianta me perguntar como sei disso, porque também não vou contar.
Incumbido da tarefa de criar o slogan da mais nova cidade do estado, batizada de Santo Antônio do Centro, o membro mais jovem da família Martins, Fernando, botou nas costas o peso leve dos seus 19 anos de vida e viajou até o campo de pesquisas para conhecer um pouco mais sobre essa gente que, diziam, estava a revolucionar o conceito de cidade moderna.
Chegando, logo se deparou com algo inusitado: uma miniescada rolante de apenas três degraus para descer da plataforma da rodoviária, a qual levava a um longo corredor cercado por um complexo poliesportivo, só que apenas com quadras de areia. Não havia como entrar na cidade, saindo da rodoviária, sem cruzar todo esse trecho e assistir as pessoas jogando bolas de todos os tamanhos para cá e para lá, fosse com as mãos, os pés ou raquetes.
Com um mapa aberto em seu celular, Fernando localizou a praça central da cidade e decidiu caminhar até ela. Afinal, nenhuma estatística substitui a pesquisa de campo, algo que aprendeu com o avô, Valdemar, responsável também por instigar o instinto natural da observação, a chave para o sucesso da família na arte das nomenclaturas. O velho Martins sempre lhe dizia: “só existe uma pessoa melhor que nós na arte do batismo, Fernandinho, e o nome dele era João Batista”.
A primeira observação do jovem Fernando foi sobre as plantas. Santo Antônio do Centro não tinha árvores! Era repleta de canteiros, todos bem podados e com apenas dois tipos de plantas: ficus lyratas nos locais de sombra e cactos nos locais ensolarados. Um jardineiro com uniforme de servidor municipal trabalhava nos arredores e explicou que uma assembleia decidiu dessa forma na elaboração do projeto urbano de Santo Antônio do Centro para evitar raízes, animais impertinentes e principalmente insetos.
A arquitetura da cidade também chamou sua atenção, já que todas as casas eram idênticas, com a mesma fachada, suas paredes pintadas de cinza-médio e portões pretos totalmente fechados. O mesmo servidor público explicou que isso também fazia parte do projeto urbano, uma ideia retirada dos condomínios de São Paulo para evitar confusão entre vizinhos, competições estéticas desnecessárias e poluição visual.
Em seguida, o jovem Martins caminhou pelo comércio e não pode deixar de notar as lojas de alto padrão e o incrível número de academias e lojas de suplementação esportiva. Para uma cidade de apenas 20 mil habitantes, o que explicaria a existência de 4 academias distintas em uma mesma rua, todas aparentemente lotadas ainda o relógio marcasse 15h30? Aliás, só não eram todas vizinhas de muro porque uma grande livraria as separava, o que veio a calhar, pois um livro seria boa companhia para matar o tempo na praça. Ao entrar nela, no entanto, deparou-se com um banner a anunciar o mês comemorativo da autoajuda, período em que o estabelecimento venderia livros única e exclusivamente daquele gênero — o mais detestado por Fernando, que preferiu ir embora sem adquirir nenhum exemplar.
Finalmente na praça central, acomodou-se na cafeteria da esquina, com vista para a praça, e pediu um expresso duplo para acordar as ideias. Dali pode ver crianças e cachorros brincando dentro de um cercadinho que não tinha nada de “inho", e outro padrão lhe saltou aos olhos: cachorros todos pequenos e da mesma raça, o barulhento Spitz Alemão, e diversos meninos jogando futebol, todos vestindo camisas de times europeus como Real Madrid, Barcelona e Chelsea.
“Nenhum são-paulininho, por Deus…” , murmurou baixinho, mas acabou ouvido pelo senhor da mesa vizinha.
“Você deve ser de fora para não saber que aqui não torcemos para times brasileiros. Isso é coisa do passado, quando não tínhamos acesso ao futebol europeu, bem jogado, organizado, dono dos melhores jogadores. Não perdemos tempo assistindo um esporte de pouca qualidade se temos disponível o melhor entre os melhores.”
“Mas o que fazem nos bares durante a noite se os jogos europeus são transmitidos à tarde? Hoje é quarta-feira, noite de Libertadores, podemos pedir para o garçom ligar aquele telão daqui a pouco, o que acha?”
“Hoje à noite tem futebol mesmo, o bar sempre lota, mas para ver a Champions League.”
“Como assim? Os europeus estão de férias e à noite não tem jogo…”
“Você assiste só jogos ao vivo? Hahahaha, que ultrapassado! Aqui toda quarta-feira à noite tem jogo, os pais trazem seus filhos e colocamos jogos da temporada para ver pelo YouTube. É uma delícia, as crianças aprendem a torcer logo cedo.”
Ao dizer isso, o Senhor Champions League — como Fernando o batizou mentalmente — foi interrompido por uma criança de 10 ou 11 anos, não mais do que isso, um pequeno portador de notícias ruins que apareceu como uma ventania. “Vovô, o senhor viu que o De Bruyne está mesmo indo para o lixo do Napoli? O que o melhor jogador do século pensa que está fazendo ao deixar a Premier League para jogar num time pequeno desses, numa liga que ninguém conhece?”
Fernando levantou de supetão. “Ei, garoto…”, começou a dizer, mas mudou de ideia. Pagou sua conta, abriu novamente o mapa e voltou para a rodoviária. Não precisava ver mais nada, dizer mais nada, ouvir mais nada. Só queria deixar aquela cidade para trás e voltar para sua casa a tempo de ligar a televisão e ver o Morumbi pulsar em mais uma noite de Libertadores, sem torcedor sênior ou mirim falando sobre futebol europeu, sem fãs de De Bruyne, do Manchester City. Queria ver uma casinha colorida, um portão desbotado pela ferrugem, um vira-lata caramelo mijando num poste, uma raiz de árvore rompendo o meio-fio, uma criança sem camisa chutando pedrinhas ou empinando pipa, vizinhos brigando. Queria, e muito, uma noite de amor intenso com sua esposa, fazer um filho nela e enfiar na cabeça dele, com o tempo e com carinho, as belezas do futebol sul-americano, fazê-lo sentir o cheiro da grama e vestir a camisa do tricolor para torcerem juntos. Queria abrir o YouTube, sim, por que não?, mas para que o filho decorasse até de trás para frente a narração de Víctor Hugo Morales do gol do século, marcado por Maradona contra a tirania inglesa, na Copa de 1986. Um gol para afundar as Falkland Islands e dar vida às Islas Malvinas. Queria fazer um filho e ensiná-lo espanhol para narrar com Morales o inesquecível “Barrilete cósmico... ¿De qué planeta viniste para dejar en el camino a tanto inglés, para que el país sea un puño apretado gritando por Argentina?”
Antes de entrar no ônibus, amaldiçoou a mini-escada rolante (“idiotas!!!”) e anotou em seu caderninho o único slogan possível para a nova cidade: Santo Antônio do Centro, a “Cidade sem Metafísica”.
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